15 novembro 2013

Sobre o conto "O Miserável" e o Movimento Cartonero

Comunicação de Andreia Joana Silva, a propósito do lançamento dos livros "O Miserável e Três Contos Filosóficos" e "Qualquer idiota morre depois" [edição bilíngue Português/Espanhol], do escritor César dos Anjos.

Sobre o texto O Miserável                                  

                Este texto não é aconselhado a leitores sensíveis. Contudo é um texto que eu aconselho a leitores sensíveis. Trata-se de um texto perturbador, é certo. Mas que cumpre a sua função artística: a de incomodar o leitor, a de perturbar, de tocar com o dedo no âmago da ferida, nas entranhas, alcançando algo que é quase inumano, ou talvez seja tão humano que tenhamos medo de admitir que o é.
                O conto O Miserável ficou no top 5 do I Prêmio Internacional de Literatura Cartonera, lançado por Cephisa Cartonera. Foi um texto que me custou a ler, devo admitir. Mas ainda assim é um texto que faz bem ler. No sentido em que obriga a questionarmo-nos, a colocarmo-nos certas questões que por vezes não ousamos colocar. Cumpre a sua função artística no sentido que incomoda o leitor e impele-o a reagir. Abana-o, sacode-o.
                Em O Miserável estamos perante um texto cuja essência é primordialmente demoníaca. Deparamo-nos com um personagem que nos transporta até ao seu mundo, o qual é um autêntico locus horrendus. Neste locus horrendus no qual nós, leitores, somos gentilmente convidados a entrar, acompanhamos o personagem e vivemos com ele o exteriorizar dos seus demónios através de estupros, violência gratuita, assassinatos, crimes hediondos. Assistimos à procura do personagem pela libertação, a sua catarse. A qual não chega, qual animal insaciável que continua à procura de satisfação e prazer incessantemente.
                Nietzsche dizia que “o imitar é congênito no homem e ele compraz-se no imitado”. Ou seja, enquanto seres humanos, retiramos prazer na imitação da realidade, pois é inerente à nossa natureza. Imitamos como forma de aprendizagem, como forma de brincadeira e em tom jocoso, imitamos para tornarmos a realidade alheia mais próxima de nós. Sendo a literatura o espelho da realidade, teremos também nós prazer em ver essa realidade imitada? Ou esse prazer caberá só ao escritor, que a imita, (des)escrevendo-a?

Sobre o trabalho das editoras cartoneras

                É com grande satisfação que acolhemos Querubim Cartonera na grande família cartonera, numerosa e instalada nos quatro cantos do mundo. Já muito se tem escrito sobre a importância das pequenas editoras, mas tudo se resume a uma alternativa: uma alternativa à publicação convencional. Nós, cartoneros, queremos voar mais alto. Queremos ser mais do que uma alternativa. Queremos ser uma família. Queremos fazer livros como quem faz bolos para oferecer aos amigos e familiares, queremos que os livros sejam uma desculpa para estarmos juntos, para trabalharmos em coletividade, para descobrirmos o companheirismo e a amizade em torno dos livros. Claro que falamos de um projeto multidimensional e com imensas potencialidades (certamente a maior parte delas ainda não estão exploradas).
                As editoras cartoneras nasceram com o objetivo de publicar autores não conhecidos, fazer livros com um baixo custo de produção os quais se pudessem vender também a um baixo preço. Isto significa que a nível literário abriu-nos as portas a um mundo ainda inacessível e deu-nos à boca literatura de rua, na qual há o apelo ao grotesco, ao feio, ao mundano, ao proibido (não deixem de ler as primeiras obras publicadas de Eloísa Cartonera). O cânone ficou de lado e novas janelas literárias abriram-se para nos darem a conhecer novos autores que de outra forma nunca seriam conhecidos.
                Por outro lado, podemos também dissertar sobre o lado artístico que as editoras cartoneras veiculam: não nos cansamos de repetir que não há dois livros iguais. É o nosso estandarte. Cada livro é feito com amor, carinho e dedicação q.b. Sendo inteiramente feitos à mão, são irreproduzíveis. São únicos. Já sabemos que para nós, ávidos leitores, cada livro é único, mas estes são mesmo únicos pois não existem dois livros iguais. Estamos portanto perante o livro-objeto, o livro enquanto obra de arte plástica.
                Socialmente temos também uma grande responsabilidade: valorizar a figura do catador de lixo. É a ele que vamos comprar o papelão mais caro, tentando contornar o sistema, mostrando-lhe que o seu trabalho merece ser mais bem pago. Ajudando-o a viver melhor nesta sociedade madrasta. Sensibilizando a população. Olhando-o nos olhos.
                Hoje, neste momento, assistimos à continuação do movimento cartonero. Assistimos ao nascimento de mais uma irmã cartonera. É em momentos como estes que sentimos todo o nosso trabalho recompensado: quando conseguimos transmitir aos outros esta nossa garra de perpetuar algo que é maior do que todos nós, algo que mesmo nós, ainda não conseguimos compreender. Hoje, neste momento, mesmo longe, estamos aí com vocês. Estamos no meio de amigos. Revemos as caras conhecidas. Distribuímos beijos e abraços. Felicitamos a Querubim Cartonera e, com um forte acento hispânico, dizemos Avanti cartoneros!

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